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Notas a partir do filme Antes do Pôr do Sol

_ As pessoas têm um caso ou até relacionamentos, terminam e esquecem tudo. Sinto que não esqueço as pessoas com quem estive porque cada uma tem qualidades específicas. Não dá pra substituir ninguém. O que foi perdido está perdido.
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Cèline (Julie Delpy)

_ O que significa isso? ‘O amor da sua vida’. O conceito é absurdo! ‘Só nos completamos com outra pessoa’. É cruel!
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Cèline (Julie Delpy)

C: Ter alguém sempre por perto me sufoca.
J: Espera… você disse que precisa amar e ser amada!
C: Mas quando acontece, sinto enjoo. É um desastre!
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Cèline (Julie Delpy)
Jesse (Ethan Hawke)

Antes do Por do Sol
(Before Sunset – 2004)

Cada um é único. E é somente advertido disto que é possível verdadeiramente amar alguém.
Na singularidade que o outro porta.
Com isso, podemos afirmar: ninguém é substituível!
Mas fazer desta singularidade a única possibilidade para ‘dar conta’ da nossa falta (a partir de onde amamos) é um entendimento equivocado deste conceito de ‘único’.
Colocar o outro na posição ideal de que ele é ‘o nosso complemento’ é absurdo e fadado ao fracasso.
Mas… como o buraco é sempre mais embaixo: o desafio mesmo do (des)encontro de dois é equacionar amor e desejo.
Eles não se confundem nunca!
Ali onde desejamos, comumente não amamos.
Ali onde amamos, é difícil sustentarmos o desejo.
Isso se coloca porque desejo é diferente de amor.
O desejo é metonímico. É sempre desejo de outra coisa.
O amor está mais para uma estrada em construção. Um passo após o outro numa renovação de escolha de manter o caminhar.
Cada amor é novo.
Cada amor é único.
E para vive-lo, é preciso escolhe-lo em detrimento do troca-troca descartável para tentar garantir a fagulha de uma paixão, efêmera e afoita por natureza.
E nessa construção, o devoramento passional não constrói, mas destrói o espaço inequívoco entre dois. E é só mantendo este espaço (impossível de ser eliminado) que se sustenta algo de uma articulação do desejo com o amor.
Deixar espaço… para o outro desejar…
E continuar escolhendo amar!

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Acham mesmo que amar é fácil?
Se o amor é uma construção permanente, a dificuldade está imposta!
O problema é que tendemos a confundir dificuldade com impossibilidade. Impossibilidade mesmo é a alma gêmea.
Podemos pensar o Amor Lacaniano como um amor mais maduro justamente porque ele fura aquela alienação que se apresenta lá na primeira infância entre mãe e filho. Onde se faz extremamente necessária a entrada de um terceiro, enquanto intervenção, para ensinar ao bebê e relembrar à mãe que eles são dois e não um.
Ora, querer fundir-se no/com o outro não é demasiado infantil?
Querer que o outro queira o que você quer não lembra a mãe que decide que a filha fará ballet mesmo que ela não tenha o menor brilho nos olhos por esta atividade?
Querer que o outro seja o que você idealizou não é a mesma coisa que colonizar o outro dizendo como se vive, se comporta, se pensa… tal como uma mãe decide na criação de seu filho?
O amor é outra coisa…
O amor de dois adultos é o encontro desencontrado do que cada um é. Desencontrado porque haverá inúmeras diferenças.
Amar é amar sobretudo a diferença. Por isso tão difícil!
Amar as semelhanças é muito fácil.
Voltamos à cena do bebê que, a todo momento os adultos ficam querendo identificar os traços familiares: nariz do papai, boca da mamãe, covinha do irmão, pé do vovô…
Quando o filho pode falar para os pais: ‘eu não penso como vocês’ é que o amor precisa ser aprendido, comprometido e sustentado.
Na relação de dois amantes, é preciso ter lugar para o ‘não’. O ‘sim’ incondicional é catastrófico.
Mas, para isso, é preciso haver dois AMANTES. Ou seja, dois que estejam dispostos a AMAR. E não apenas na posição de querer ser amado. Até porque amar já é querer ser amado. Mas não vai bem se for apenas isso.
E para isso, é também preciso um bocadinho de sorte. O acaso também pode nos brindar com encontros de pessoas que queiram amar.
Amor que não sabe amar… tem aos montes por aí! Amor que quer aprender a amar é raridade.

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Ah! A fantasia!
Aquela que sustenta o objeto no lugar de amado.
É verdade que também nos sustenta no lugar de objeto submetido. Mas isso é assunto para outro momento…
Voltemos: amamos o outro porque vemos algo neste outro que é muito mais do que ele!
Afinal, o enxergamos através das lentes da nossa fantasia.
O outro pode até brincar um pouco de ocupar esse lugar vez ou outra, mas exigir dele a ‘fixão’ na nossa ficção… é um suplício! É mata-lo completamente como sujeito.
Certamente não é sem a fantasia que amamos, mas é preciso saber se servir dela para não detonar o amor a serviço de uma exigência extenuante.
Também é preciso saber que o outro não te enxerga a partir do mesmo lugar que você o coloca.
E é justamente pelo fato de um nunca estar lá onde buscamos que podemos apostar na sustentação de algo do desejo na questão amorosa.
Equação bastante difícil… principalmente porque sempre exigimos que o outro nos ofereça o que pedimos. Porém, basta que esta demanda seja atendida… já não era mais isso. Será que em algum momento foi?
Muitas vezes pedimos por teimosia, por ‘questão de honra’, e nem sequer lembramos de nos questionar ‘o que queremos quando dizemos que queremos o que queremos’.
Complicado? Pois então, em uma análise a nossa fantasia vira questão em detrimento de uma exigência ignorante. Uma complexidade que nos salva de algumas ‘boas’ enrascadas.
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Flávia Albuquerque