*Trabalho apresentado no XIII Encontro Nacional e Colóquio Internacional do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise, realizado em João Pessoa – PB em novembro de 2023.
Nesta breve contribuição, escolho sustentar uma questão crucial: o que faz alguém praticar a Psicanálise?
Não quero, com isso, me ater aos equívocos que levam ao passo inaugural de querer atuar como psicanalista.Não que isto seja sem importância!Lembremos que a psicanálise confere lugar privilegiado aos equívocos. Penso até que o artigo freudiano Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidianapoderia facilmente se chamar Sobre os Equívocos da Vida Cotidiana.Me ocorre também que no livro de Gérard Haddad, O dia em que Lacan me adotou, ficamos sabendo que foi um equívoco a partir do termo ‘clínica de Lacan’ que levou o autor ao divã e, posteriormente, a atuar na clínica como psicanalista.
Mas para nos deslocarmos do ‘querer’ para o campo do Desejo, como pensado e trabalhado em termos psicanalíticos, rebusco a questão:O que faz alguém sustentar a prática da psicanálise?Não ceder justamente quanto à prática, ou seja, a clínica?
Vivemos numa época em que o neoliberalismo convence psicanalistas a transformar a psicanálise em mercadoria e vende-la como um plano de carreira com uma série infinita decursos prometendo o esclarecimento de conceitos ou ainda garantindo o ensino da técnica para uma atuação de sucesso. Nós, que lutamos tanto para manter a importância da depuração da construção de saber que leva tempo, travessia e experiência, que defendemos que a psicanálise é uma prática do impossível e não uma profissão como qualquer outra, podemos perceber algo além de um equívoco. Chã, Patinho e Lagarto no encarte do Super Mercado da Psicanálise. A impostura é perversa. E este submetimento à lógica vigente do capitalismo, cada vez mais selvagem, certamente abrevia a disponibilidade e a disposição à clínica.
Retomo, mais elaboradamente: o que faz alguém bancar, ainda hoje, confrontando o pensamento neoliberal contemporâneo, a marginalidade de sustentar um desejo que não tem garantias e é intangível?
Recentemente tive o deleite de ler Xadrez, uma novela de Stefan Zweig, que faz parte do volume Novelas Insólitas publicado pela Zahar. Recomendo enfaticamente que se proponham a leitura deste volume que foi se mostrando incrivelmente freudiano a cada página. Vale mencionar que Zweig era amigo de Freud e entusiasta de sua teoria, e podemos conferir os desdobramentos deste laço em sua obra.
Mas voltando à novela, quero destacar que há um personagem que joga inúmeras partidas de Xadrez… consigo mesmo.Nos angustiamos ao ler sobre a sua angústia com o poderoso duelo que ele trava entre o Eu-Brancas e o Eu-Pretas numa fascinante ilustração da divisão subjetiva que, para quem como nós se submete a uma análise, sabe se tratar de uma espécie de conflito entre dois gigantes.
Escolhi mencionar esta novela para ilustrar que, de forma análoga, sustentar uma análise é sustentar a angústia e a ousadia que é se deixar atravessar por um saber que muitas vezes nos horroriza, nos envergonha, nos faz estranhar a nós mesmos, nos faz lutar contra o estranho que habita em nós.
E já não basta o sacrifício de experimentar a investigação de sua forma atormentada de existir habitando seu próprio corpo?Como pode haver aquele que ainda decide receber, escutar, se espantar, se prestar a instrumento de causa de certos outros que assim o demandam num laço inaugural que é a transferência analítica?Qual a razão para se propor, incansavelmente, a ter notícias de frases herdadas e sonoridades (con)fundidas na carne de um outro que o busca?Por qual motivo topar, cotidianamente, a empreitada de acompanhar e presenciar alguns com suas incertezas de gesto e dor de existir?O que faz alguém escolher, dia após dia, atestar a tormenta de um outro e se manter ávido por ter acesso ao que anima a potência de ser de cada um que se endereça ao seu divã?
Tanta língua para aprender a falar, e o psicanalista é aquele que escolhe ser fluente na língua do inconsciente?! Escolhe ou é imposto, por qual via?
Há um X, ou melhor, um a que faz enigma.
Questionam:
É ciência?É ciência.
É ciência?!Não-toda ciência. É arte.
Definitivamente: é arte!
Don’tforget Freud, dizia o slogan do Museu de Freud em Viena na ocasião da minha visita em 2018.Não esqueça Freud, diria uma tradução precipitada.Eu sugiro: Não recalque Freud.Em seu artigo escrito em terceira pessoa O método psicanalítico freudiano, ele próprio afirma ter desenvolvido uma arte da interpretação.
Tomemos então a psicanálise como a arte de se isolar com um outro para se haver com e inventar o que fazer com a própria existência. Existência carimbada com letras, marcada por significantes, portadora de rastros. De um Outro que a princípio tem nomes, e mais adiante não tem rosto e nem sequer existe. De um Outro ao outro.
Mais ainda, a psicanálise como a arte de convocar um alguém a escrever o texto de sua autobiografia.Autobiografia de suas paixões, de suas pulsões, de sua falta radical, de seu gozo e de seu movimento desejante.
Seria o desejo do analista um desejo de praticar a arte de fazer surgir um desejante?
Uma vez mais, me remeterei a uma de minhas recentes leituras:
Patti Smith, cantora, escritora, compositora e musicista, publicou em 2010 Just Kids (Só Garotos), um livro de memórias de sua história com Robert Mapplethorpe, fotógrafo conhecido por sua obra controversa por expor… a sexualidade humana.Na afetiva e cativante publicação, tomamos conhecimento de que os dois eram mais do que amores e amigos, mas verdadeiros parceiros na busca pela arte. Era tudo em nome da arte: penúria, fome, moradia em lugares insalubres ou até mesmo sem teto por algumas noites. Verdadeiros esforços viscerais para sustentar o que lhes era inegociável: a arte como motor e causa da vida de cada um.Logo nas primeiras páginas, Patti menciona a primeira vez que ela ficou cara a cara com a arte, diante de Picasso no Museu de Arte de Filadélfia.Cito:
“Tenho certeza de que, enquanto descíamos a grande escadaria, eu parecia ser a mesma de sempre, uma menina embasbacada de doze anos, toda braços e pernas. Mas secretamente eu sabia que havia sido transformada, comovida pela revelação de que seres humanos criavam arte, de que ser artista era ver o que os outros não conseguiam ver.”
Enfim, o livro é um belo exemplar da arte como inegociável, transformadora e via de acesso a algo para poucos. Como não lembrar de Freud em uma carta a Pfister?“É preciso ser sem escrúpulos, expor-se e arriscar-se, trair-se, comportar-se como o artista que compra tintas com o dinheiro da casa e queima os móveis para que o modelo não sinta frio. Sem alguma dessas ações criminosas, não se pode fazer nada direito.”
Retomo a questão: O que faz o atormentado por sua existência escolher, insistir, persistir, sustentar e bancar praxicar a arte de fazer dizer o impossível? Esta arte de promover a possibilidade de inventar uma vida e então abrir caminho para o analisando ser criador e criatura da própria existência?
Minha tentativa é de não cessar reescrever a questão e assim sublinhar a importância de sustentá-la e então lançar para desdobramentos. Afinal de contas, cada um vai sustentar esta questão à sua maneira em seu trabalho de análise.Mas não vou me furtar de dizer algo:a minha hipótese – ou um rastro/resto dela – é que aquele que exerce – e sustenta! – deliberadamente a função de psicanalista é um fissurado pela diferença.Pelo singular.Por aquilo que não faz par.Pelo ímpar que a tessitura da vida é capaz de forjar.Não é a psicanálise o avesso das multidões?
Alguém que deseja construir um saber a respeito de como o ser humano entrou pela porta da linguagem e ter a oportunidade de ser testemunha auricular de como cada sujeito pavimenta sua estrada para caminhar na vida.
Um alguém que, ao final de sua análise, não só abre mão de querer teimosa e ilusoriamente ser amado mas, ouso dizer, chega até a desejar restar.Não ceder justamente quanto à prática clínica psicanalítica é saber de seu destino de resto e ver arte nesta perda e nesta renúncia. Como quem acolhe um animal ferido e depois o impulsiona a relançar seu passo e caminhar em nome próprio.
No fim, nos fins das análises.
Para fazer sustentar o outro resto que importa:O Resta um.
Um da diferença radical.Como só pode ser o sujeito ao fim de uma análise.
Há um.
Só há um.
Um e nada mais.